Alturas da Alma (ou bagagem para o abismo)


Todas as vezes que você cai no abismo escuro e solitário da depressão
- Esse lugar úmido, ora quente, ora gelado, onde eu não caibo -
Eu me deito no chão, com a boca bem próxima da tampa
E me certifico de que pelo menos a minha voz ressoe até o fundo.

Enquanto eu deito no arame e você se aconchega nos braços da tristeza
Eu me calo antes de falar.
Ponho minha língua para fora da boca para sentir o sabor do vento
Este vento que agora se assenta, depois do furacão que você formou

Eu resisto, mas não consigo deixar de lembrar de cada furacão que você se tornou
Bem na minha frente.
Do meu lado.
Comigo.

Vejo você fazer isso o tempo todo com todos que você supostamente ama ou deveria amar.

Te vejo sendo esse furacão em pessoa com sua mãe. E me pergunto se a atitude dela não é reflexo da sua.
Claro, depois me lembro quem devia ser o adulto da história. E como isso não diminui ou apaga as covardias que ela fez ou não impediu que fossem feitas com você, ainda menino.
Mas agora você é o pai. E eu também me pergunto se você não estaria reproduzindo essa violência travestida de ressentimento no seu filho.

Você não lembra da sua reação exacerbada 
E talvez até ele não se lembre.
Mas o inconsciente é implacável.
Ele lembra de tudo. 
Ele amargura.

Esses olhos de desprezo que você às vezes vê no menino
Não são só os olhos vermelhos da adolescência.
São também olhos de quem já acumula mágoas e tem seu caráter forjado nesse fogo

(Um menino ainda com páginas em branco
Não percebe, mas pode escolher
Entre um fogo que pode queimá-lo
Um fogo a quem pode imitar
Ou um brando, que o possa aquecer)

O fogo do seu ódio, da sua impaciência e surto.
Um fogo que você deseja remover de você, cuspindo feito um dragão e queimando quem estiver na frente.
Quando se livra dele, você se esquece, se tranquiliza no alívio de quem tirou o lixo de dentro de casa

Mas alguém tem de lidar com esse lixo. Alguém vai ter de limpar as feridas das queimaduras.
Estamos enrolados nas ataduras do seu fogo. Lambendo as feridas, com medo, esperando a próxima reação.

Já sabemos lidar com ele. Mas é mais difícil traduzir o silêncio.
Quando o lobisomem amanhece. E se vê nu, com o corpo cheio de feridas e de um sangue que não é seu
Ele se envergonha. Ele deseja morrer, a ter de atacar novamente.
Ele se esconde no lugar mais distante e fundo.

E então eu acordo dessa epifania complexa e rápida
Ela acontece enquanto eu me deito no arame
Teu peito é o arame
E às vezes minha voz, às vezes somente minha respiração
Vão te trazendo à luz da consciência, abrindo seus olhos de toda essa loucura

E você mesmo me ajuda a te resgatar do limbo
Que eu mesma já não sei como nem por que fostes parar lá
Eu só me inconformo e tento esconder a minha completa decepção
De nunca ter conseguido fechar esse buraco

E me lembro que ninguém preenche nossos vazios
Somos nós quem fazemos isso com apoio
Este é um lugar onde mãos terceiras não passam

É como se a nossa vida fosse um holograma. Você ouve a voz do socorro
Mas só você pode se levantar de um lugar onde só cabem você, seu fracasso, sua coragem e uma escolha.
O inverno vai passar e com ele sua fronte deixará de ser tortuosa e infrutífera
Esteja à vista quando o sol vier e a chuva te alimentar
Se veja como eu vejo: carregado de frutos e promessas.


Dazzle Jam - Pexels
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"Existem alturas da alma, de onde mesmo a tragédia deixa de ser trágica". (Nietzsche, Além do Bem e do Mal: prelúdio a uma filosofia do futuro)

Comentários

  1. Somos quase sempre nós, mulheres, que ecoamos essa voz perto da tampa. Depois precisamos escrever, pra curar e retomar a energia que dispendemos. Seu texto é denso, cheio de imagens ricas e me faz pensar em cura.

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  2. Texto com o peso de muitas gerações, profundo, gostei de ler você escrevendo novamente!

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    1. Mein guter Freund! Desde sempre, os vitrôs do porão estão abertos pra ti.

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Éam?!?

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